quarta-feira, outubro 30, 2024

a dor

Falar da morte parece mórbido. É, porém, um facto que vem agarrado à vida.

A Joaninha tinha sete anos quando a mãe engravidou de novo. Das memórias de infância que tem, lembra-se da mãe com uma barriga maior que o habitual e do ar luminoso que a mãe tinha.
Depois, não sabe bem quando, tudo se esfumou da sua memória.
Aquele bébé morreu. Feto, ainda, com cinco meses, a mãe teve um aborto espontâneo.
O que sabe, hoje, pelas histórias contadas pela mãe, é que aquele ser era uma menina e que estava morta já quando se deu a expulsão, no hospital, com cinco meses de gestação.
Ficou um vazio, um silêncio. Ninguém falava nisso, lá em casa.
À Joaninha faltou-lhe viver aquela dor.
Queria ter chorado, agarrada aos pais; queria ter vivido a dor da perda, na altura própria; queria ter saudado e reconhecido aquela vida irmã.

Em adulta, reconhecendo a perda, deu-lhe um nome. Chamou-lhe Margarida.
Para viver a dor da perda da Margarida, alguém ofereceu a Joaninha, já em fase adulta, uma boneca: "esta é a tua irmã".
Joaninha andou com a boneca, falou com ela, contou-lhe factos da vida, porque Joaninha era a irmã mais velha, podia aconselhar. Fez isto durante mais de um ano.
A dor da perda foi desaparecendo.
A Margarida seguiu o seu caminho.
Joaninha sonhou com ela, um dia. Com um rosto cheio de traços de família, sereno e sorridente, Margarida disse à irmã, no sonho, que não era precisa aquela dor; que ela estava bem; que a amava.
Joaninha acordou nesse dia com uma saudade extrema; chegara a hora da despedida pacífica, de deixar ir quem muito amava.
Chorou a perda, finalmente, sozinha, como achou que deveria ter chorado em conjunto com o pai e a mãe, na altura própria. Fez o seu próprio luto.
Hoje, quando vê uma família que perde um filho e vive essa perda com dor, no momento certo, fazendo da memória daquele ser uma parte saudável do núcleo familiar, sente que tudo está bem, ali.
A dor é para ser vivida, não por masoquismo, mas porque realmente dói muito perder alguém que se ama.
Descobriu, ao longo da vida, que muita gente já lhe tinha dito "parece que tu perdeste alguém na tua vida". Porém, nessa altura, ainda não tinha tomado consciência desta perda e dizia "eu não perdi ninguém".
Agora, homenageia a irmã, dizendo sempre que não é filha única. Teve uma irmã chamada Margarida, que morreu e que está em paz.
Agora, não sofre depressivamente essa perda; não chora o facto de, a ser ainda viva, Margarida teria muito provavelmente uma família, uma carreira, os seus amigos.
Descobriu também , nas palavras de Henry Scott Holland, exactamente o que a Margarida lhe queria dizer naquele sonho:

"A morte nada é.
Eu apenas estou do outro lado.
Eu sou eu, tu és tu.
Aquilo que éramos um para o outro
Continuamos a ser.
Chama-me como sempre me chamaste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom da tua voz,
Nem faças um ar solene ou triste.
Continua a rir daquilo que juntos nos fazia rir.
Brinca, sorri e pensa em mim,
Reza por mim.
Que o meu nome seja pronunciado em casa
Como sempre foi,
Sem qualquer ênfase,
Sem qualquer sombra.
A vida significa o que sempre significou.
Ela é aquilo que sempre foi.
O "fio" não foi cortado.
Porque é que eu, estando longe do teu olhar,
Estaria longe do teu pensamento?
Espero-te, não estou muito longe,
somente do outro lado do caminho.
Como vês, tudo está bem."

Joaninha.
Margarida
Unidas pelo amor.
Joaninha vive a vida em pleno, pensando, saudando, e homenageando, com alegria, esta dádiva chamada Margarida - a minha irmã.

(Texto publicado originalmente a 9 de Abril de 2006)

2 comentários:

Pete disse...

Que ternura... fiquei comovido... :o))))

tb disse...

Caminhos comuns trouxeram-me até aqui...
a vida e a morte essa ligação indissociável. Sim, temos que fazer o nosso luto para que a morte passe a ser uma libertação da vida. Gostei muito.
Voltarei!