sexta-feira, novembro 18, 2022

... não sou capaz de ler isto...

"Inspirado pela minha breve visita à residência dos Bliss, propus-me, com uma ambição sem paralelo em mim antes ou desde então, conquistar a mão da mulher cuja voz, cabelo e pele pareciam ter imbuído todas as membranas do meu corpo e violado todos os limites da minha alma. Um tal estado, tenho por vezes pensado, deve ser semelhante a esse êxtaseque define a vida do místico religioso - a sensação do corpo repleto do espírito de Deus. Espero que não seja uma blasfémia fazer esta comparação, mas creio que nunca estive tão perto de um estado de graça como nas semanas e meses em que cortejei Etna Bliss, um estado de graça que se manifestava no meu discurso, nos meus gestos e num sorriso quase irreprimível.

 "Tudo o que ele sempre quis" de Anita Shreve 


 Irra!! Isto está na página 34 do livro e não passo daqui. Simplesmente, não consigo. Começo a olhar pela janela, a apreciar os pássaros, o sol, as nuvens. Tudo me parece tão mais interessante do que este livro. 
Em contrapartida, literalmente, "engoli "A Saga dos Otori" de Lian Hearn. 
São três livros, que retratam o Japão no período pré- Tokugawa. É uma história simples, que vai avançando ao longo da saga. Sem grandes "efeitos literários", Lian consegue mostrar o cenário, construir as personagens, dar-lhes vida, sentimentos. Tudo. 

Portanto, em dois dias li estes três livros e ando há uma semana a tentar passar da página 34 do livro de Anita Shreve. Impossível. 
Já percebi que quando não consigo ler um livro e fico emperrada numa página, não vale a pena forçar a leitura. Acho que sei o que me impede (interiormente) de continuar com Anita Shreve. 

Abomino quando se exacerbam sentimentos na escrita; abomino mesmo, é quase físico. Dá-me vómitos. 
Para melhorar a coisa, estão escritos na contracapa do livro de Anita Shreve os comentários do USA Today ["Viciante... Anita Shreve é magistral na forma como descreve o arrebatador impulso da paixão."]; do The Guardian [" Impossível de pousar".]; do Washigton Post ["Delicioso... Shreve no seu melhor".]; do Seattle Times ["Um estudo perspicaz sobre o desejo obsessivo... Um dos mais bem conseguidos romances da autora."] 

Pois, não... não é viciante. É perfeitamente possível de pousar (inclusivamente deixá-lo a apanhar pó ou inadvertidamente deixá-lo na mesa do café). Não é delicioso. Se é perspicaz no estudo sobre o desejo obsessivo ... isso é questionável. 

 Simplesmente não suporto este tipo de escrita, trabalhada e elaborada, em que as palavras parecem ter sido colocadas lá, ao acaso (quantas mais palavras , melhor!), para retratar o mundo insano de um homem (ele é a personagem principal e fala no discurso direto, em jeito de quem conta a sua história), que fica obsessivamente agarrado a uma mulher que vê num incêndio - assim começa o livro.

"Perdemos" é realmente a palavra, porque não me revejo nisto, perco-me mesmo na descrição dos sentimentos da personagem. Não acho interessante a forma como a autora descreve a maneira como ele olha para o colo da mulher, como se fixa nela de uma forma obsessiva, com muitas palavras, uma verborreia que me empanturra. 

Acho que me tornei numa leitora bulímica, com este livro. 
Empanturro-me e depois vomito tudo. 
Claro que já comecei a ler de novo várias vezes e outras tantas vomito as palavras a seguir. 
E por aqui me fico, pela página 34. Finito! 

Estou a fazer terapia para a minha bulimia de leitura. 
O livro vai para a prateleira... escondido, lá pra trás.

Questões de "linguística"

É muito importante a forma como falamos, o uso que damos à linguagem. 

Na língua Portuguesa existe o verbo "ser" que é muito mais complexo e elaborado do que as três letras que tem. 

 Certa vez, conheci uma mulher que se me apresentou com o nome completo. Ora vejamos, disse ela, estendendo-me a mão e com o nariz empinado: 

 - Sou (agora vou inventar o nome, que já não me lembro) Maria Luísa Godinho Silva e Cunha. Sou mulher do Dr. Silva e Cunha, que é cirurgião no Hospital X. 


 Bom, eu fiquei com o pêlo eriçado, como os gatos. 

 - Muito prazer. Eu sou a Dra. (pespeguei-lhe com o meu primeiro e último nome). Pode tratar-me por doutora. 

 E sorri-lhe. Como é que três letrinhas estão cheias de tanto, não é? 
Aquela mulher, é (lá está, o verbo ser) uma mulher. Porém, aquilo que ela "é", ela própria define como sendo "casada com" e é isto que ela é; portanto, o suposto estatuto social do marido. Certamente que estava habituada a usar a profissão do marido de forma intimidatória. Era óbvio que o dizia como forma de se impor, numa situação de impacto inicial. Ficou um bocado baralhada, quando lhe respondi da forma como o fiz. 

 Em Portugal, há alguns licenciados que não têm "título". Numa licenciatura de engenharia, é-se engenheiro; em arquitectura, é-se arquitecto. Os médicos são "doutores", mas também são "doutores" os advogados e, há que dizê-lo, também são "doutores" os Professores (com licenciatura de cinco anos). Portanto, esta coisa das licenciaturas é um bocado confusa. No meio académico, é claríssimo que se alguém é chamado de Professor, então essa pessoa tem um doutoramento - como é o caso do nosso PR - Professor Cavaco Silva. 

Portanto, academicamente acima de qualquer "doutor". Mas "ser" engenheiro, "ser" arquitecto, "ser" médico, "ser professor" não é o que somos. 
É o que fazemos. 
Depois, surge a outra questão; como é que dizemos "eu faço arquitectura"? Ou "eu faço advocacia"? Não soa nada bem. 

Hum... como se diria então... "eu faço... professorado?". 
Não, pois não? É talvez a única profissão em que se é, realmente. 
Sou professor significa - eu ensino. Mas isto são outros quinhentos! 

De qualquer forma, se desmontar o discurso introdutório daquela senhora, ficaria qualquer coisa como isto: 

 - Chamo-me Maria Luísa. O meu marido é médico. Sinto-me poderosa só porque casei com ele e faço questão de o dizer ao mundo. 

 Ahh!!!! Assim, sim. Eu ter-lhe -ia respondido apenas, "muito prazer, o meu nome é ...".

O homem voador e a vida complicada

Foi há umas semanas atrás que , no café da frente, estava a dar a TVI de manhã. 

 Entra o trânsito e passam a emissão para aquele senhor que anda de helicóptero, sabem? 
Pois, a TVI paga ( e não deve ser pouco) para ter o helicóptero a sobrevoar certas áreas da Grande Lisboa, nomeadamente o IC19 e a A5, durante a chamada "hora de ponta". 

 Dizia o homem voador que a manhã estava cinzenta, chuva miudinha a cair aqui e ali e, portanto, uma manhã ... muito complicada. Quanto ao trânsito, tudo tranquilo. 

 Hum??? Uma manhã cinzenta e chuva miudinha poderiam contribuir para uma manhã difícil no trânsito, o que, pelos vistos, não era o caso. 
Ora então, afinal, porque estava "complicada" aquela manhã? 
Por estar cinzenta e com uma chuvita a cair de vez em quando?? Se, afinal, estava tudo bem no trânsito, onde estava a complicação? 
Se todas as "complicações" que cada um de nós tem na vida fossem manhãs cinzentas e chuva miudinha, isto era um paraíso!! 

Um paraíso com nuvens, chuvita e tal, mas não vejo aqui complicação! 

 O que valeu, naquela manhã, foi a voz off, logo a seguir, do meu querido amigo Eduardo Pinto, que fez um belíssimo trabalho ao explicar como estava, de facto, o trânsito: em geral, sem grandes dificuldades. Sem dramatismos, o Eduardo fez um belíssimo trabalho só com a voz. 
Trezentas vezes melhor do que o senhor voador do helicóptero da TVI. 

 Diz-se que estamos em crise? Então, que tal a poisar o helicóptero (menos poluição para nós e mais poupança para a TVI) e realmente investir em pessoas como o Eduardo, que sabe bem o que é falar sobre o trânsito. 

Afinal, não é nada complicado, é simples!