instante

Todas as manhãs, Ana Maria cruzava o centro da cidade. Gostava de observar a diversidade de pessoas; gostava do carácter individual de cada um; da diferença das aparências, das disposições matinais; dos rostos que se miravam.

Naquela manhã, Ana Maria caminhava mais uma vez pelo centro.
Vindo do nada, um vulto passou à sua frente. Um homem. Naquele instante, o mundo de Ana Maria parou. Um instante, extenso, extenso. Viu-o, como se ele caminhasse lentamente, de casaco comprido castanho, cachecol em desordem enrolado ao pescoço. Óculos redondos à frente de uns olhos azuis, que os cabelos compridos tentavam esconder. Ficaram presos, esses olhos, nos dela. Foi uma fracção de segundo e, logo ali, uma explosão de momentos raros. Não se conheciam, nunca o vira. E, de olhos presos, olharam-se para não embater um no outro, no meio de tantos cruzamentos humanos no centro da cidade.

Um olhar parou o tempo no centro da cidade.

Ela desacelerou, para ele passar. E ele passou tão devagar!
Ana Maria seguiu caminho sem virar a cabeça, sem olhar para trás.
Perdeu a noção do espaço, das pessoas que continuavam a cruzar-se, porque assim é o centro da cidade pela manhã.
Não deu conta dos dois rapazes que tocavam viola, para arranjar uns trocos; da rapariga que trazia o cabelo cor-de-rosa e três piercings nos lábios; não se lembra de lhe terem oferecido um guarda-chuva que "Está barato, menina. São só 5 Euros!"; não se recorda de ter parado automaticamente na passadeira para passar um carro da Polícia.
Ia de sorriso vestido nos lábios, como se os olhos não estivessem ali, os ouvidos noutro lugar e o pensamento parado.

A memória recuperava ainda da lentidão dos momentos raros que acontecem na vertigem de um simples momento, no centro da cidade.
Esse dia começou com o tempo no sítio certo. Viveu o resto do dia com a mesma lentidão com que aquele homem passou por ela.

A verdade, é que o dia passou num instante.


[Foto de Cameron Davidson]

(Texto publicado originalmente a 23 de Março de 2006)