quarta-feira, outubro 30, 2024

Cão de Guarda


Achava eu que nasci para cão de guarda!
Fui parar a casa daquela rapariga que me acolheu, aquela que usava um roupão cor-de-rosa, felpudo. Era sobre a barriga dela que eu dormia, quente, confortável. Coitada! De pequeno, pensas que eu a deixava dormir? Fazia uma gritaria tal, que ela não me deixava adormecer naquele caixote, onde os pais dela me puseram quando cheguei.
Ah! Mas ela não me queria no caixote! E lá ia eu ao colo. Deitava-me sobre a barriga dela e eu adormecia com o calor do corpo coberto com aquele cor-de-rosa felpudo.
Já te disseram que nós, os cães, não vemos cores, além do preto e branco, não já?
Quero lá saber do que dizem. Eu sei que aquilo era cor-de-rosa. Porque fui crescendo, fiquei assim, como me vês, um matulão, para defender a casa. E nunca mais me esqueci da cor. Era parecida com a cor de umas flores que havia lá no quintal e que eu cheirava tantas vezes. Mas a rapariga não cheirava assim, mesmo que a cor fosse a mesma.
Pois, olha, eu cresci, ela cresceu. Reconhecia-a sempre ao longe; lembrava-me da cor, daquele cor-de-rosa felpudo, depois era o cheiro dela, era tudo!


À noite, lá no quintal, muitas vezes havia calor. Então, ela e eu ouvíamos uns sons a partir de um aparelho que havia lá na janela. Trazia-me um osso grande, grande – era uma especialidade aquilo! Era para eu roer. Depois, deitava-se ao pé de mim, a olhar para o céu, para aquelas luzes brilhantes lá em cima. Aquele som que ouvíamos era agradável. Ela chamava-lhe música. E eu roía o osso. Ela tinha aquele costume irritante, sabes, de me por a mão no lombo enquanto eu roía. Mas isso é que era giro nela; um grande cão como eu, um verdadeiro cão de guarda, não podia deixar que ela me interrompesse o repasto. E rosnava-lhe. Baixinho, que eu não a queria assustar. E ela tirava a mão devagar, também para não me incomodar. E era isso que eu gostava nela. Era o olhar, era a voz quando falava - se bem que, para ser honesto contigo, não percebia muitas das palavras que ela dizia. Era mais a entoação que dava à voz. E quando franzia as sobrancelhas, e falava mais alto, aqui este teu amigo, de cauda entre as pernas, ia pregar para outra freguesia. Aquilo era a forma dela me rosnar, eu percebi, que não sou parvo.


Mas ela cresceu tanto que acho que deixou de caber lá em casa, porque se foi embora.
Nunca mais fui o mesmo. Quer dizer, eu também era grande, mas ainda cabia lá, porque não me fui embora.


Agora, estou aqui a falar contigo e tenho saudades dela! Mas tenho mesmo! Ainda vem cá a casa e eu grito-lhe “anda lá ouvir música comigo, traz-me um osso”. Salto-lhe e tudo! Mas sabes o que é que ela traz, quando vem? Um carro, com um tipo lá dentro que não me cheira nada bem.


Acho que depois foi esse tipo que passou a ouvir música com ela e era a ele que ela dava ossos. Só pode! Ainda por cima, pus-me a observar e vi que ele não lhe rosna! Estou desesperado, porque, olha, tenho a certeza que não devia ter sido cão de guarda. Assim, perdi-a. Se eu, ao menos não lhe tivesse rosnado, ela não tinha ido dar ossos a outro!
O roupão cor-de-rosa é que ficou lá em casa... normalmente, durmo encostado a ele.

(Texto publicado originalmente a 11 de Fevereiro de 2006)

1 comentário:

Empregado de balcão disse...

É sempre bom passado uns tempos descobrir que existem sitios onde a morte não é definitiva.

:) Welcome back Estranhos amores.