Diga-se que esse tipo de experiências não têm mais poder do que aquele que lhe quisermos dar. Por isso, só nos limitam porque nós permitimos.
Ora vejamos: nasci e cresci no meio de pedra granítica, numa cidade "pequena", limitada e feia. Assim a vejo. Na minha infância, tudo à minha volta era estratificado socialmente - as pessoas valiam pelo estatuto social que tinham e não pelas suas qualidades humanas.
Basta dar este exemplo: duas das minhas vizinhas e "amigas" de infância eram filhas de um casal socialmente considerado de "alto" estatuto social - portanto, uma família endinheirada (porém com uma capacidade intelectual muito reduzida).
Crescendo, a vida leva-nos por aí fora, até à idade adulta.
Dessas duas filhas, a mais nova ficou na cidade e casou. Não conseguia engravidar, tentou anos e anos, com tratamentos de fertilidade de permeio. Não engravidava. Claro que os mais ponderados sugeriam-lhe a adopção. Mas a mãe dela não queria que a filha adoptasse: a fortuna da família iria para uma pessoa "de fora"!!! Portanto, esta rapariga, estava em luta consigo mesma, com os pais, com tudo. Queria engravidar, ponto! Nenhum tratamento de fertilidade que o dinheiro da família podia comprar, lhe dava o que ela mais queria.
Enfim, claro que muitos tratamentos depois, toda a família desistiu. Muito bem, vamos para a adopção! Tudo preparado para adoptar um menino que já vinha de outro lar e estava em idade pré-escolar. Foi adoptado.
Certamente que a continuação desta história se adivinha. Com um filho adoptado e sem a ansiedade de "querer engravidar" à força toda, sem qualquer tratamento de fertilidade, finalmente, eis que esta rapariga engravida!!
Creio que já contei isto antes, porque me chocou tanto!!! Ainda me choca e vai sempre ficar na minha memória.
Assim que ela engravida, o casal, aconselhado pelos pais dela (nomeadamente a mãe), decide "devolver" aquele menino à procedência!!! Sem se despedir dele, com a maior crueldade possível, este menino foi preparado de manhã para ir para a Pré- Escola, como todos os dias, com a mochila do almoço e do lanche e uma muda de roupa e por ali ficou!
Quem o foi buscar à tarde, foi a assistente social que tratava do caso dele. E ele volta para o "sistema" de adopção. O casal, nem se despediu dele.
Dói-me tanto esta situação!! Este menino, que não tem responsabilidade nenhuma sobre isto, que viveu com este "casal", nunca foi filho, foi um penso rápido! Como se pudéssemos descartar seres humanos, crianças!!
Que me diz isto, a mim, que sempre fui tão crítica em relação à cidade em que nasci? Que isto pode acontecer em todas as cidades? Pode. Mas aconteceu na minha, com pessoas que me fizeram sentir na pele, enquanto criança, que o mundo girava à volta dos tostões e não das qualidades e defeitos que todos temos.
Sinto-me mal porque, se for honesta comigo mesma, sou cruel. Sei que a vida vai e volta e nem vai ser preciso eu ir lá, pregar-lhes umas lambadas bem dadas. A vida vai encarregar-se disso.
Não há dinheiro que pague a minha vida, a minha família, o amor que sinto dentro de mim e a vontade com que fiquei de ser eu a adoptar aquele menino.
A suposta "avó" - a tal que não queria que a fortuna da família fosse para uma pessoa "de fora" - é a mesma pessoa que a minha mãe convidou uma vez para almoçar no restaurante chinês e que respondeu:
- Eu?? Credo, ouvi dizer que eles comem cães e gatos e sapos. Nem pensar em ir a um sítio desses!!!
De que lhe vale tanta fortuna, se esta mulher é tão miserável?? Nenhum dinheiro do mundo a vai tornar um ser humano decente. Nem ela, nem as filhas! Lamentavelmente, a filha mais velha teve um filho portador de deficiência.
Não me regozijo com isso. Abano a cabeça e tenho esperança que esta criança seja o motor de arranque para que esta família se torne menos cruel, mais humana, mais sensível.
De qualquer forma, duvido. Duvido muito!
(Texto publicado originalmente a 1 de Junho de 2020)
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